A CANÇÃO DE QUALQUER MÃE
(Lia Luft)
Que nossa vida, meus filhos, tecida de
encontros e desencontros, como a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas
generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos — algo
que só pode nascer entre nós. Que quando eu me aproxime, meu filho,
você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que
já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha, você não se sinta
criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada, como desde o primeiro
instante.
Que, quando se lembrarem de sua infância, não
recordem os dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não
tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos à flor da pele —
aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda agora dói em
mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se dos deliciosos
momentos em família, das risadas, das histórias na hora de dormir, do bolo que
embatumou, mas que vocês, pequenos, comeram dizendo que estava
maravilhoso. Que pensando em sua adolescência não recordem minhas
distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia,
o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de
aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.
Que quando precisarem de mim, meus filhos,
vocês nunca hesitem em chamar: mãe! Seja para prender um botão de
camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre,
socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou
preocupação. Não é preciso constrangerem-se de ser filhos querendo
mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com
suas alegrias e dores, como eu tenho e tive as minhas. Que, independendo
da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro. Que essa
consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela
pessoa, seja onde for, vai saber entender ; o que não entender vai absorver ; e
o que não absorver vai enfeitar e tornar bom.
Que quando nos afastarmos isso seja sem
dilaceramento, ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seu
caminho, mesmo que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro seja
de grandes abraços e boas risadas. Esse é um tipo de amor que
independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos vocês
encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no
meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar
para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque
vocês estão aí. Que quando pareço mais cansada vocês não tenham
receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente
não precisarei de mais apoio do que do seu carinho, da sua atenção natural e
jamais forçada. E, se precisar de mais que isso, não se culpem se
por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor:
as coisas são assim. Que, se um dia eu começar a me confundir, esse eventual
efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo
mundo, sem drama nem culpa, mesmo quando se impacientarem. Toda a
transformação do nascimento à norte é um dom da natureza, e uma forma de
crescimento.
Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu
qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam
perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de
quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto,
plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e
da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicar os
enigmas da existência. A sensação vinha do seu cheiro, da sua pele,
de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim, e desse
amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada
terra. E assim sendo, meus filhos, vocês terão sempre me dado muito
mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter.